Alexandre Cruz
Colunista do blog
Esquerda e o verbo
A confiança da direita sempre foi cimentada pela segurança que dá o poder econômico, a força da tradição e a convicção que ninguém pode com a servidão voluntária. A confiança da esquerda se funda na história, por tanto, no futuro. Conforme Anthony Giddens: “Nos coloca na história qual seres que possuem um passado determinado e um futuro previsível”, a esquerda sentia o privilégio de interpretar melhor que ninguém o caminho até o amanhã. Essa condição de vanguarda dava razão na história como uma força que contrarrestava o poder econômico de uma direita que condenava ao obsoleto.
A realidade não seguiu o caminho prescrito pelas ideias de esquerda e depois do capitalismo não veio o socialismo e sim o retorno do capitalismo depois do naufrágio do socialismo real. A razão da história se freou com o totalitarismo estalinista. A esquerda perdeu a confiança em si mesma. A promessa do futuro sobre que cimentava sua força tanto o otimismo revolucionário como o realismo reformista se chocou ao comprovar que nem o caminho rápido da grande explosão nem a via lenta do Estado bem estar social europeu conduziam a terra prometida. O desconcerto deriva que toda ideologia estava em função de essas premissas. De modo que cada uma das palavras que compõe o ritual discursivo da esquerda perdeu sentido.
Reconstruir a linguagem pela contaminação totalitária e a apropriação conservadora, é uma tarefa que não há manual de condução, dificilmente compatível com as urgências de governo de cada dia. Os laboristas ingleses abordaram em sua grande travessia de deserto da oposição, os socialistas franceses voltaram ao poder para eleger quando estava só iniciando a limpar do grão de palha. Os socialistas espanhóis optaram por eleger candidato antes de renovar ideias e as palavras. Ganhar é o que importa, dizem os políticos. Mas, há um amplo setor da cidadania que quer vencer para que as coisas se façam de outra maneira. Se trata só de assegurar a alternância, podemos eliminar a política por publicidade, os partidos políticos por gabinetes de imagem e comunicação.
Derrotado o comunismo, a direita tratou de fechar com urgência o debate sobre o modelo de sociedade. O discurso do fim da história é o adorno teórico que utiliza para vender a ideia que a mudança social não tem sentido. De modo mais brutal, a Thatcher resolveu o problema: a sociedade não existe. Se a sociedade não existe, não há nada que cambiar, só esperar que o mercado nos seja benigno. Já que a sociedade não existe, a política, que é a arte de atuar sobre os homens, é um atraso. A economia, se transforma em um fim em si mesma e todo os demais se dão por acréscimos. Não há política, não há alternativa porque a margem de manobra é irrelevante, de modo que, dizem, a oposição direita/esquerda não tem sentido.
A alternância é uma rotação no poder por estritas razões de eficácia: de vez em quando há que substituir as pessoas porque o poder desgasta e corrompe. O progressivo desmantelamento do Estado se reforça com o desprestígio da política e a consagração de um mito: a inexistente sociedade civil.
O objetivo principal da esquerda pasam por três pilares do Estado bem do estar social: a educação, a saúde e a justiça. O universal e a eficácia de esses serviços devem reduzir os privilégios de classe. A burguesia destruiu os mecanismos de reprodução da aristocracia e substituiu por um sistema meritocrático (Marx e Engels explicaram no Manifesto, que já cumpriu 150 anos. Apesar da limitada eficiência, deixa espaço para o mito de self-made-man. A negação de todo ideal regulador se chama imobilismo e conduz a liquidação da esquerda e por tanto, deixa as sociedades estancadas e sem alternativa real possível.
Somente a esquerda pode defender a sociedade aberta. Se pode ter uma economia de mercado, mas não uma sociedade de mercado. A sociedade de mercado é aquela que não existe, porque os indivíduos se transformaram em mercadorias e as mercadorias não estabelecem relações sociais. Este é o ideal tatcheriano que não tem nada a ver com a sociedade aberta. A obsessão produtiva, o crescimento das diferentes rendas e a destruição do tecido social baixo a lógica darwinista da competitividade ameaçam as sociedades democráticas com um novo autoritarismo, com menos aparato, quicas mais eficaz.
Que deve fazer a esquerda internacional? Não ser conservadora. A esquerda deve defender a consciência democrática frente a consciência resignada que assumem a realidade dos que assumem a realidade como um destino submetido aos caprichos do deus mercado. O que equivale a defesa da sociedade aberta. Os critérios da direita e da esquerda não são os mesmos. Para a direita, se trata de fixar o cidadão em relação ao sistema de produção. Para a esquerda, a dignidade do cidadão está por cima de seu peso de força de trabalho ou dinheiro na conta corrente. Para direita, o importante é o crescimento econômico, para a esquerda a defesa da coesão social. A coesão social se deve entender, não como se faz na lógica da direita como o controle efetivo da cidadania e sim a coesão social como garantia que todos têm reconhecido o direito a palavra – o direito de ser escutado – que dá sentido de condição de cidadão.
A esquerda jamais deve ter medo a dar a palavra aos desempregados, algumas capas de aposentados, por mais que representem setores pouco ativos da sociedade. A esquerda não pode renunciar a sua dimensão cultural, não pode entregar todos os valores para a direita. Ao hierarquizar – liberdade, igualdade e fraternidade – a esquerda está se diferenciando da direita, porque a primazia da liberdade se estabelece sobre um fundo que habitam também a igualdade e a fraternidade. Por isso a radicalidade democrática significa defesa da política. Quando a direita anuncia o fim da política em favor da economia está apostando que a cidadania renuncie o uso da palavra, ou seja, o direito a ser escutada.