Questão terminou com invasão da Fazenda Southall e a sequente implantação dos assentamentos em 2008 (foto divulgação) |
Teixeira relembra que a desapropriação foi feita com base numa vistoria irregular, sem comunicação prévia ao proprietário, e que as fazendas Estância do Céu, Caleira, do Salso e Posto Bragança eram propriedades de alta produtividade no ramo da bovinocultura de corte, com animais premiados quase anualmente na Expointer. “Tanto assim foi que a ministra do STF Ellen Gracie concedeu liminar suspendendo o decreto, e no julgamento definitivo do mérito, o supremo derrubou sua validade, coisa que o governo federal nunca aceitou”, afirma.
Marchas, contramarchas e conflitos com a BM marcaram os anos de tensão agrária em São Gabriel |
Produtores acabaram feridos em agressões por determinação do então Governador Rigotto |
Armas e objetos apreendidos na desinvasão da Southall, em 2007. Animais acabaram mortos na propriedade |
Desapropriação da Southall, Dez anos depois
Tarso Francisco Pires Teixeira
Presidente do Sindicato Rural de São Gabriel
Vice Presidente da Farsul
Neste mês de maio, um episódio cheio de profundos significados para a história da questão agrária no Brasil estará completando uma década, cheia de conseqüências e implicações. No dia 20 de maio, o então estreante presidente Lula, aos cinco meses de seu primeiro ano de mandato, publicava no Diário Oficial da União o decreto que declarava de interesse social para fins de reforma agrária, uma área rural de mais de 12 mil hectares, formada pelas fazendas Santa Adelaide, Estância do Céu, do Salso, Caieira e Posto Bragança, então pertencentes a Alfredo Southall. A decisão, que ganhava manchetes nos principais jornais do Estado nos anos seguintes, anunciava a construção do “maior assentamento agrário do planeta” em São Gabriel, município de forte tradição no agronegócio, que recebeu de militantes da esquerda o apelido jocoso de “Coração do Latifúndio”. Jocoso e falso, uma vez que, já naquela época, a média do tamanho das propriedades rurais no município jamais ultrapassou 50 hectares.
A desapropriação foi decretada com base em uma vistoria do Incra feita dois anos antes, de maneira irregular, sem prévia comunicação ao proprietário, como determina a lei, e eivada de equívocos técnicos. Exatamente no dia 26 de maio, como reação a um decreto baseado numa vistoria irregular, nascia uma mobilização da sociedade civil da região, denominado Movimento “Esta Terra Tem Dono”, evocando uma frase erroneamente atribuída ao líder guarani Sepé Tiaraju. A adesão à causa ultrapassou a barreira das entidades rurais, passando também pelas associações comerciais, do empresariado e também dos trabalhadores rurais. O movimento realizou uma concentração histórica no antigo Cine Vitória, em 2 de junho de 2003, mesma data em que a então ministra do STJ, Ellen Gracie Northfleet, concedeu liminar suspendendo a desapropriação até o julgamento de seu mérito.
O MST inicia uma marcha para São Gabriel em 10 de junho de 2003, para protestar contra a decisão da Justiça. Os produtores de São Gabriel, com o apoio de muitos municípios, organizam uma contra-marcha pela defesa do direito à propriedade. Apesar da postura dúbia do governo estadual da época em muitos momentos, ambas as marchas foram realizadas. Mas em 14 de agosto de 2003, o plenário do STF, por 8 votos a 2, considerou ilegal a desapropriação. Mas o episódio seria, pelos anos seguintes, um espinho atravessado na garganta ideológica do MST e seus aliados dentro do governo federal, como declarava o então superintendente do Incra, Mozart Dietrich, para quem a desapropriação da Southall era “uma questão de honra”. Honra, aliás, posta em xeque anos mais tarde, quando foram descobertos os negócios pouco ortodoxos do superintendente junto a moradores do assentamento Nova Santa Rita.
Com o estímulo vindo dos gabinetes de Brasília e Porto Alegre, o MST partia para o ataque. Em 2005, foram deflagradas diversas invasões do “Abril Vermelho” por todo o Rio Grande do Sul. O campo reagiu com o “Maio Verde”, que partiu de São Gabriel, com centenas de máquinas colheitadeiras na Praça Fernando Abbott. O movimento inspirou ato semelhante da CNA. Em dezembro daquele mesmo ano, o MST acampa no leito da RS-630, área do Estado. Produtores rurais marcham ao local pedindo pelo pronunciamento da Justiça, e são espancados por integrantes do Batalhão de Operações Especiais da BM, encarregada pelo governo Rigotto de proteger o MST.
No final de 2006, o MST marcha mais uma vez em direção a São Gabriel. Em Dezembro, os produtores gaúchos realizam o I Fórum Rural pelo Direito à Propriedade, onde são apresentadas propostas claras para solucionar a questão agrária. Até hoje estas propostas esperam um acolhimento.
Em 2007, o MST resolve testar o novo governo de Yeda Crusius e realiza nova marcha até a Fazenda Southall, que acaba sendo invadida. Desta vez, a Brigada Militar rapidamente promove a reintegração de posse do local, tendo suas patrulhas apedrejadas por integrantes do MST, que diziam que sua marcha era “pacífica”.
Como o Incra insistisse em buscar a desapropriação da Southall, a propriedade torna-se a primeira do país a ser vistoriada por peritos judiciais, com análise da totalidade do rebanho, não somente por amostragem. O laudo conclui pela produtividade da propriedade, mas em 14 de agosto de 2008 a propriedade sofre nova invasão, desta vez com mais de 1500 militantes do MST. A propriedade foi inteiramente depredada, com prejuízos na ordem de R$ 200 mil.
Como se vê, a pressão incessante durou anos a fio, até que finalmente o Incra joga pesado e adquire a propriedade, e outras tantas áreas. Em 2008, finalmente são instalados os tão prometidos assentamentos, em 11 áreas que, somadas, ultrapassam 19 mil hectares, para o assentamento inicial de 1544 famílias. O valor inicial investido foi de R$ 224,6 milhões. O então ministro da reforma agrária, Guilherme Cassel, no ato de instalação do assentamento Conquista do Caiboaté, ressaltou que aquele seria um “assentamento-modelo”. De fato, suas palavras foram proféticas: atualmente, o legado da desapropriação é um modelo da falência do sistema de reforma agrária preconizado pelo governo federal. Cultivo incipiente, vias internas em estado lastimável, habitações paupérrimas e ausência total da tão prometida infra-estrutura em saúde e educação, ônus inteiramente absorvido pelo governo municipal, sem os anunciados recursos.
Relembrar este epísódio, que muitos gostariam de ver relegados ao esquecimento, é fundamental para demonstrar o quanto custa ao país escolhas equivocadas, que mesmo prometendo justiça e distribuição de renda, apenas produzem mais miséria e exclusão social.
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